‘Tomei como missão’, diz Shantal sobre não se calar sobre violência obstétrica
“Eu não sei se queria contar para ela que foi assim”, inicia a empresária e influenciadora Shantal Verdelho em uma conversa franca com Marie Claire. “Tudo isso veio a público sem eu querer. Inclusive era um assunto que eu queria guardar no meu âmbito íntimo até para preservar a Domênica, né? Mas agora não tem mais volta”, lamenta sobre o caso de violência obstétrica que acusa ter sofrido sob os cuidados do ginecologista e obstetra Renato Kalil em setembro do ano passado.
O primeiro desabafo foi feito em um grupo privado com cerca de 50 mulheres, que buscou quando começou a desconfiar de que algo não estava bem. Em dezembro, o áudio foi vazado e ganhou repercussão nacional. Nele, constava o relato de ter sido exposta e constrangida, xingada e submetida a pressões para procedimentos cirúrgicos não requisitados. Não demorou para que as imagens também circulassem na mesma proporção.
“Com certeza, quando a Domenica crescer, vai dar um Google no nome dela e vai aparecer isso. Fiquei muito incomodada com o uso da foto dela em notícias que não estavam relacionadas ao meu caso. De repente, o rosto da minha filha estava estampado em histórias horríveis.” Para lidar com a repercussão do caso, Shantal precisou contratar uma equipe de assessoria de comunicação.
“Minha filha sempre dormiu bem à noite, desde quando nasceu. Quando aconteceu essa história, ela passou a acordar de hora em hora, e a única coisa que me explica isso é a energia ruim que tudo isso nos trouxe.”
Shantal
“Fiquei bastante assustada, meu parto foi extremamente exposto, e demorei para processar tudo o que estava acontecendo”, relembra em entrevista feita por videochamada. “Todo mundo tem uma melhor amiga, que tem uma melhor amiga. E se alguém fala do médico da sua amiga gestante, você vai tentar alertá-la. Não quis gastar energia com isso”, conta sobre como suspeita que sua mensagem tenha vazado.
Nas cenas que circularam, o médico Renato Kalil aparece dizendo: “Porra, faz força”; “Viadinha”; “Você está meditando”; “Não se mexe, porra”. Além dos xingamentos, Shantal relata que foi submetida a uma manobra de Kristeller (quando alguém sobe na barriga da parturiente e faz força, empurrando o útero para tentar a expulsão do bebê), que não é recomendada pelo Ministério da Saúde há cerca de duas décadas.
Ela também conta que foi pressionada para uma episiotomia (corte cirúrgico no períneo, na região entre a vagina e o ânus, que em tese ajudaria na passagem do bebê) e para o uso de medicamento que induzisse o parto. À época, ela definiu o vazamento da história à Marie Claire como “constrangedor e delicado”.
“Fiquei com muito medo de não acreditarem em mim. É um sentimento de não entender o que está acontecendo.”
Shantal
Antes do parto, foram três meses em repouso absoluto, desde junho, quando foi internada com 23 semanas de gestação após uma série de contrações de treinamento. À época, passou por procedimento de dessensibilização do colo do útero para impedir que o bebê nascesse prematuro extremo.
As contrações de treinamento são comuns durante a gestação, mas dentro de um limite de tempo de duração e de distanciamento entre uma e outra. No caso de Shantal, o prognóstico exigiu que ela passasse três meses deitada de lado, em plena pandemia. Às vésperas do Natal, afastou-se da internet, cancelou trabalhos e dedicou-se a processar tudo o que ocorreu.
Quando aconteceu tudo isso, a primeira sensação foi a de medo: “‘Meu Deus do céu, ele vai me destroçar, vai me esmagar. E agora? Como vou conter?’ Essas eram as minhas preocupações, não queria que nada disso fosse para a frente porque eu estava com medo da atitude que ele fosse tomar e de como iria se defender disso’, relembra. “O fato de ele ser homem e ter uma equipe gigantesca já me colocava em desvantagem, pois sempre se acredita mais no homem.”
“Eu precisava do meu tempo e tive meu tempo. Agora, tenho a possibilidade de levar esse assunto à frente, uma vez que eu sou uma figura pública. Realmente tomei como uma missão. Vou fazer isso para sobreviver e levarei comigo todas que nunca foram ouvidas.”
Shantal
“Antes de tudo, a vítima é descredibilizada em todos os casos. Principalmente na nossa hierarquia social, a vítima, a mulher, é tratada como se estivesse sempre querendo ‘caçar confusão’, ‘aparecer’. Primeiro colocam tudo em xeque”, desabafa Shantal, que conta que recebeu mensagens de pessoas que duvidavam do que ela relatava já quando os áudios e vídeos começavam a circular. Antes, ela já havia tido de justificar a “falta de emoção” durante o parto, que levou dois dias.
“Mesmo com as imagens, diziam que era ‘mimimi’, que eu estava exagerando. Isso me machucou muito. Não basta a gente ter passado por aquilo, ainda é precisa mostrar: ‘Sou eu e passei por isso’. Como assim?”
Shantal
Depois, as cobranças mudaram de tom: por que não fizeram nada antes, na hora? Por que não reagiram? A responsabilidade parecia ser toda e apenas da família. “Eu só pensava: Quero me esconder, quero que isso passe, só quero que acabe. Socorro! E então recuei.”
O julgamento ainda estava lá: “‘Você não vai falar nada? Você não está dando importância para esse assunto?’ Eram muitas cobranças”, lembra. “Além do meu núcleo doméstico, sou responsável financeiramente por muitas pessoas da minha família. Então afastada por tantos meses é algo que também me afetou também por isso.”
“Eu não conseguiria aparecer e fingir que nada estava acontecendo, não falar do assunto. Então recuei, porque estava com medo e também porque fiquei abalada emocionalmente. Eu nunca tinha ficado assim. Nem nos meus três meses de cama, que é uma coisa muito difícil, né? Ficar apenas na cama, levantando apenas para ir ao banheiro. É uma história que me deixou muito abalada emocionalmente, porque veio muito recheada de medo”, lembra.
Durante esse período, Shantal adoeceu. Teve sintomas de gripe, seguidos por uma sinusite. “Quando fui à delegacia, estava com tanta dor de cabeça que mal podia enxergar a delegada. Vão se somando uma série de coisas. Cada vez que toco no assunto, é muito desgastante. E isso altera a nossa imunidade também.”
Das mensagens que chegaram até Shantal, veio uma resolução. “Recebi relatos de mulheres que passaram por isso, coisas muito piores do que o que passei, mulheres que perderam os filhos no parto por conta da violência obstétrica. É um assunto grave e de que ninguém estava falando, e isso não pode ser assim. Precisamos falar porque as coisas precisam mudar”, pontua.
Apaixonada pela maternidade, Shantal sempre foi o que define como “uma entusiasta da obstetrícia”. Além de seguir perfis que abordam o mundo dos partos, costuma pesquisar, ler e assistir a vídeos no YouTube sobre o assunto. “Sei muito sobre esse universo, tanto é que o próprio Kalil me chamava de ‘doutora’ na brincadeira.”
O conhecimento não impediu que ela fosse vítima do que Melania Amorim, médica obstetra e professora de ginecologia da UFCG (Universidade Federal Campina Grande), define como “um caso típico de violência obstétrica”.
“Eu fico repassando tudo o que aconteceu na minha cabeça, várias e várias vezes. Eu sabia tudo – o que queria e o que não queria no parto. Comentava isso nas consultas, apesar de ele não me dar muita abertura. E mesmo assim aconteceu comigo.”
Shantal
A relação com o médico
Para o nascimento do seu primeiro filho com Matheus Verdelho, Filippo, o Pipo, a empresária fez um plano de parto, em que detalhava suas escolhas para o momento. Desta vez, não conseguiu abertura.
“Não é algo que ele jamais tenha verbalizado, mas ele fazia piadas. Dizia: ‘Vai lá com as vilas madalocas’ [em referência à fama do bairro paulistano de reunir público mais alternativos no passado]. Não havia abertura para falar de um plano de parto, eu me sentia acuada de chegar nele e falar sobre isso. Então eu não fiz”, conta.
Hoje, avalia que o planejamento poderia ter ajudado a ela e a Matheus a se posicionar melhor. “Essa é uma informação imprescindível para as mulheres. Ter um plano, saber o que você quer e o que não quer já é um passo, mas não te protege. Eu já sabia de tudo e ainda assim deixei várias coisas acontecerem ali na hora. Nem eu nem o meu marido estávamos em sã consciência, sem contar os hormônios e tudo o mais”, afirma.
“Você está ali à mercê do médico. A minha saúde e a da minha filha, a minha vida e a da minha filha, estavam nas mãos dele. Então, se ele me mandasse ficar de ponta-cabeça, eu ficaria mesmo não fazendo nenhum sentido. Fica passando tudo isso na minha cabeça. ‘Caramba, eu sabia de tudo isso, por que deixei? Por que não o parei? Por que não fiz nada?’”
Shantal
“Maluca” é a palavra que ela escolhe, hoje, para falar sobre o relacionamento do médico. Apesar de reprovar algumas posturas, via nele uma pessoa que poderia até ser seu amigo. “Ele era gente boa, não era a todo o momento um carrasco falando palavrão, xingando, até porque eu não continuaria ali se fosse assim”, afirma.
Uma das coisas que mais a incomodavam nas consultas era o fato de ele ter falas consideradas machistas, como piadas sobre traição ou quando sugeriu o “ponto do marido”, procedimento cirúrgico que consiste em fazer mais costuras do que o necessário a fim de reparar o períneo após o parto com o intuito de “aprimorar” o prazer sexual do homem durante a penetração.
“A outra coisa era que ele falava muito sobre outras pacientes, a maioria delas conhecidas minhas: Fulana está tomando vinho na gravidez, Beltrana foi traída pelo marido e está com IST, Ciclana toma hormônio para ficar sarada”, lembra. “Acho que não estou mais em choque. Hoje, quando falo sobre isso, vejo o quanto é inacreditável um homem com idade para ser meu avô fazendo fofoca no consultório.”
“Antes mesmo de assistir aos vídeos do parto, a primeira questão que tive com ele foi quando descobri que ele falou coisas sobre mim para outras pacientes. Descobri que ele falou da minha vagina na frente do marido de uma delas: ‘Se não fizer episiotomia [corte cirúrgico no períneo], vai ficar arregaçada igual à Shantal’.”
Shantal
Ali, um alerta se acendeu. “Decidi mandar um áudio para ele. Eu fui a única, porque sou dessas. Disse que ele era um médico maravilhoso, mas que pagava pela boca. ‘Como você faz um stories no seu Instagram dizendo que meu trabalho de parto durou 48 horas e depois vira para uma paciente e diz que não sabe de onde eu inventei isso?’ E durou 48 horas!”, lembra.
Segundo ela, o médico teria retornado com desculpas: “as pessoas são maldosas”, “adoro você e o seu marido”. Foi quando ela soube de outra parte da história. Primeiro a relatar o parto, o médico revelou em suas redes sociais que Domenica era uma menina. “Eu achava que ele tinha feito sem querer, mas aí soube que exatamente na hora a minha fisioterapeuta de parto, que estava lá, disse que ele tinha revelado o sexo, que eu não queria. E ele respondeu: ‘Ai que menina mimada’”, acusa.
Pesquisa: 62% das mulheres já tiveram gravidez não planejada no Brasil
Parto recontado
Como costuma a acontecer em casos de violência de gênero, vítimas da violência obstétrica podem precisar de um tempo para entender o que se passou e dar nome a ele.
“Vem essa felicidade insana de ter ganhado um filho. Caramba, é o maior amor da sua filha, é um amor imenso. Mas, quando você começa a estudar e a ouvir sobre violência obstétrica, você nota que a maioria das mulheres demora a perceber que isso ocorreu com elas. ‘Por que eu fui amarrada? Por que levei um tapa no rosto?’ As perguntas começam a surgir depois. Sei de mulheres que só foram se dar conta um ano depois.”
Além disso, conta, ela só teve contato com tudo o que se passou depois de assistir às filmagens. “Eu estava deitada em uma posição ginecológica, não vi ele me abrindo com as mãos. Também não vi quando ele mostrou minha vagina para o Matheus. Simplesmente não tinha como enxergar de onde eu estava.” Como os xingamentos, a imposição da posição também pode ser considerada uma forma de violência contra a mulher.
As cenas, reconta Shantal, lhe deram uma visão completamente diferente de seu trabalho de parto. “Achei que minha filha tivesse pulado para fora. É raríssimo o bebê sair inteiro, principalmente em parto normal. Geralmente é em duas etapas: a cabeça, e depois o corpo conforme prosseguem as contrações. Assim que ela começou a sair, ele já a arrancou pela cabeça, e eu não consegui ver isso. Cheguei a dizer que o parto tinha sido lindo. ‘Ela escorregou’. Não escorregou. Ele que tirou.”
O relato inicial dela é um dos argumentos usados pela defesa do médico Renato Kalil, que nega as acusações. “Não só falei publicamente no meu Instagram como mandei um áudio para ele dizendo que o parto havia sido perfeito, que eu não mudaria nada”, diz ela.
“Eu estava no puerpério, banhada em hormônios e feliz da vida por ter tido um parto normal, porque eu consegui trazer a minha filha para casa no tempo certo depois de ela quase nascer prematura. Eu estava muito feliz, e essa alegria parece que apagou as outras coisas. De fato, foi um dia incrível, o dia do nascimento da minha filha, era muita felicidade”, afirma.
Novas denúncias
Desde que o caso de Shantal veio à público, ao menos outras sete mulheres se pronunciaram sobre casos de violência obstétrica e sexual envolvendo o médico. Kalil é atualmente investigado pela Polícia Civil e pelo Ministério Público em São Paulo.
Correspondente do jornal The Wall Street Journal, a jornalista britânica Samantha Pearson, afirmou ter sido humilhada pelo médico “várias vezes”. “Se você não emagrecer, seu marido vai te trair”, teria lhe dito o obstetra. Ela já foi ouvida pelo MP.
Em entrevista ao Fantástico, a fotógrafa de partos Fernanda Sophia classificou o médico como “extremamente arrogante e agressivo”. Também ao programa, a bancária Letícia Domingues afirmou ter sofrido abusos sexuais quando esteve internada em 1991. Uma outra mulher falou à reportagem do dominical, sob condição de anonimato, ter sido assediada numa consulta médica.
“Estamos trabalhando em duas frentes de trabalho. Estamos acompanhando todos os passos do inquérito policial, mantido contato com as autoridades e trocando informações, além de acompanhar as provas produzidas”, explica Fabiana Dal’Mas, promotora de Justiça de enfrentamento à violência doméstica, designada para atuar no inquérito de Shantal ao lado de Silvia Chakian.
Além disso, foi aberto um procedimento de investigação criminal na promotoria, mais ampla, que está ouvindo outras mulheres que têm aparecido especialmente na mídia a fim de averiguar possíveis práticas criminosas. “É um caso bastante importante para gerar uma discussão nacional a respeito da violência obstétrica”, opina.
É esse o objetivo de Shantal. Sem citar nomes, ela revela que mantém contato com outras vítimas. “Converso com outras mulheres que o denunciaram formalmente algumas outras que têm muito medo. Uma delas tem a pior história que já ouvi, mas tem muito medo de denunciar, ter problemas emocionais por conta disso. Então a gente criou essa rede de apoio entre nós”, relata.
Para Shantal,o sentimento não é muito diferente. “Eu estou em uma situação de muito medo do outro lado. Estou falando de um homem conhecido na área da medicina, de uma família tradicional, poderoso e influente. Eu não sei o que que ele vai fazer — e ele está programando alguma coisa, com advogados, publicitários, todo um time de gestão de crise.”
Parte da força, ela tira dos relatos de outras mulheres, que a procuram desde que seu caso se tornou assunto nacional. “Eu preciso que a Justiça seja feita. Eu preciso que ela esteja do meu lado e mostre para tantas outras mulheres que não é para ficar calada, que homens no Brasil não são intocáveis”, diz. Segundo ela, a defesa já tem três testemunhas que estavam presentes no momento.
Para além do seu caso, ela espera se tornar um ponto de confiança para mulheres que queiram se informar e se unir à causa. “Meu caminho é o de apresentar solução. Quero dar voz a profissionais que lutam para combater a violência obstétrica, criar formas de como a mulher pode se proteger.”
“Os médicos não te perguntam o que você quer. E isso no sistema privado. No público, as gestantes nem sequer têm uma conversa prévia, nem sabem quem vai ser o médico que vai estar lá de plantão. É importantíssimo que elas tenham a oportunidade de ter essa conversa, chegarem no hospital informadas, com um plano de parto feito de forma tranquila, em sã consciência.”
Shantal
Além de cobrar por maior responsabilização por parte dos profissionais por vias legais, Shantal afirma que é urgente alertar a classe médica e as gestantes para as práticas mais atuais da obstetrícia. “Há médicos mais antigos que acho que fizeram uma escola diferente. Por exemplo a manobra de de Kristeller, que hoje é considerada uma forma de violência obstétrica. Isso foi feito em mim e foi ensinado na faculdade. A episiotomia já foi praxe na escola, então eles pensam que realmente é algo que precisa ser feito. Eles não se atualizaram. Acho que deveria ter um curso obrigatório para médicos sobre violência obstétrica, que fosse obrigatório para exercer a profissão”, opina.
A reportagem de Marie Claire tenta contato com a defesa de Renato Kalil, que não respondeu aos pedidos de posicionamento até a data desta publicação.Na reportagem exibida no Fantástico, a defesa do médico disse, em nota, lamentar que um caso médico seja debatido na mídia “e que, em razão de normas éticas e sigilo profissional, não pode se manifestar publicamente, mas que isso será feito em ‘foro adequado’. O espaço permanece aberto para manifestações.