O que muda na prática se Covid virar endemia?
Ao longo das últimas semanas, países como Reino Unido, França, Espanha e Dinamarca decidiram que a Covid-19 não será mais encarada com uma pandemia e começará a ser tratada como uma endemia em seus territórios.
Com isso, a doença provocada pelo coronavírus deixará de ser vista como uma emergência de saúde e muitas das restrições — uso de máscaras, proibição de aglomerações e exigência do passaporte vacinal — cairão por terra.
Embora anúncios do tipo fossem esperados, eles causaram muita confusão: em alguns casos, a endemia foi interpretada como o fim da Covid — quando, na verdade, estamos muito longe disso (e é bem possível que essa doença nunca desapareça).
Mas, afinal, o que uma endemia significa na prática? Os países europeus acertaram na decisão? E será que o Brasil também vai chegar nessa mesma etapa logo mais?
Uma palavra, múltiplas interpretações
Para começo de conversa, vale esclarecer que uma endemia não é necessariamente uma boa notícia.
Ela apenas significa que há uma quantidade esperada de casos e mortes relacionadas a uma determinada doença, de acordo com um local e uma época do ano específicas. E esses números nem aumentam, nem diminuem.
A infecção pelo herpes simples, que provoca feridas na boca e na região genital, é uma endemia. Estima-se que pelo menos dois terços da população mundial com mais de 50 anos já tiveram contato com esse vírus. Apesar de incômodo, esse quadro não está relacionado a grandes complicações ou risco de óbito.
Por outro lado, outras doenças bem mais sérias e mortais, como tuberculose, Aids e malária, também são endêmicas. Só na malária, estima-se que cerca de 240 milhões de casos e 640 mil mortes aconteçam todos os anos, segundo as estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS).
A questão, portanto, tem a ver com a estabilidade nas estatísticas relacionadas com aquela enfermidade. Quando esses números fogem do controle, a situação evolui para uma epidemia (se o problema for localizado numa região) ou para uma pandemia (caso a crise se alastre por vários continentes).
Num evento do Fórum Econômico Mundial realizado no final de janeiro, representantes de várias instituições discutiram todos esses conceitos e debateram quando a Covid-19 poderia ser realmente classificada como uma endemia.
Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergologia e Infecções dos EUA, em foto de 22 de dezembro de 2020 — Foto: Patrick Semansky/Pool/Reuters
Na visão do imunologista Anthony Fauci, líder da resposta à pandemia dos Estados Unidos, endemia significa “uma presença não disruptiva sem a possibilidade de eliminação [de uma doença]”.
De acordo com a avaliação do especialista, o coronavírus não será extinto e passará, aos poucos, a afetar os seres humanos de forma similar a outros agentes causadores do resfriado comum.
Na mesma ocasião, o médico Mike Ryan, diretor executivo do Programa de Emergências em Saúde da OMS, também bateu nessa tecla. “Nós provavelmente nunca vamos eliminar esse vírus. Depois da pandemia, ele se tornará parte de nosso ecossistema. Mas é possível acabar com a emergência de saúde pública.”
Michael Ryan, diretor-executivo do programa de emergências da Organização Mundial da Saúde (OMS) — Foto: Christopher Black/OMS
Ele também reforçou que endemia não é sinônimo de coisa boa. “Ela só significa que a doença ficará entre nós para sempre. O que precisamos é diminuir a incidência, aumentando o número de pessoas vacinadas, para que ninguém mais precise morrer [de Covid]”, completou.
A hora e a vez da Covid?
De um lado, os cientistas se mostram reticentes em já encarar a Covid-19 como uma endemia, pela falta de parâmetros e de uma estabilidade nas notificações por um período mais prolongado.
“Isso ainda não foi bem estabelecido. Quais são os números de casos, hospitalizações e mortes pela doença aceitáveis, ou esperados, todos os anos?”, questiona a epidemiologista Ethel Maciel, professora titular da Universidade Federal do Espírito Santo.
Por outro, é inegável que o avanço da vacinação e os recordes de novas infecções impulsionadas pela ômicron nos últimos dois meses garantiram um alto nível de proteção, especialmente contra as formas mais graves da doença.
Até o momento, 53% da população mundial já recebeu ao menos duas doses da vacina. E as projeções publicadas no periódico The Lancet pelo Instituto de Métricas em Saúde da Universidade de Washington, nos EUA, indicam que, dado o alto grau de transmissibilidade da nova variante, metade das pessoas do planeta terão sido infectadas entre novembro de 2021 e março de 2022.
“É muita gente com imunidade”, avalia o infectologista Julio Croda, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Esse aprimoramento das defesas do organismo garante uma proteção contra as complicações da Covid, relacionadas à hospitalização e morte, ao menos por alguns meses.
“Graças à imunidade obtida pela vacinação e, em menor grau, pelo alto número de infecções, a doença se tornou menos letal”, diz Croda, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
A Covid chegou a ter uma taxa de letalidade de 1 a 2%. Atualmente, esse número está em 0,25%, segundo alguns registros nacionais e internacionais.
Croda explica que essa taxa de 0,25% ainda é o dobro do que ocorre na gripe (que fica em 0,1%). Mesmo assim, houve uma diminuição de praticamente dez vezes na mortalidade por covid que era observada há poucos meses.
E isso, mais uma vez, tem a ver com a imunidade adquirida ao longo desse tempo.
Os vírus e nosso sistema de defesa fazem um verdadeiro cabo de guerra. Quando surge uma doença infecciosa nova, a corda pende com mais frequência para o patógeno, já que nossas células imunes não fazem a menor ideia de como combater a ameaça.
Com o passar do tempo — e a disponibilidade de vacinas seguras e efetivas — o jogo começa a virar, e o sistema imunológico “aprende” a lidar com o inimigo. Nessa situação, mesmo que o agente infeccioso consiga invadir o organismo, suas consequências tendem a ser menos preocupantes.
É justamente isso que parece estar acontecendo com a Covid: dois anos e poucos meses depois dos primeiros casos, o número de indivíduos com algum nível de proteção é suficientemente alto para que não ocorra mais um aumento na demanda por leitos no mesmo patamar das outras ondas, em que o sistema de saúde chegou a entrar em colapso.
Resumindo, pelo observado até agora, a Covid ainda não pode ser comparada com a gripe e está longe de ser um resfriado comum, mas parece caminhar para chegar mais próximo disso algum dia no futuro.
O que muda na prática?
Os países europeus que já classificam a Covid-19 como uma endemia em seus territórios acabaram (ou acabarão em breve) com a maioria das restrições que marcaram os últimos 24 meses.
De forma geral, não haverá mais necessidade de uso de máscaras em locais fechados, não será preciso mostrar o comprovante de vacinação e as aglomerações estarão completamente liberadas.
Num discurso recente no Parlamento do Reino Unido, o primeiro-ministro Boris Johnson disse que, “conforme a Covid se tornar endêmica, nós precisaremos substituir as requisições da lei pela orientação, de modo que as pessoas infectadas com o vírus sejam cuidadosas umas com as outras”.
Maciel entende que alguns cuidados devem permanecer mesmo assim, ainda que a situação fique menos grave.
“O vírus vai continuar circulando. Mesmo que as medidas não sejam mais obrigatórias, é importante que todos tomem alguns cuidados quando necessário”, orienta.
A epidemiologista avalia que é preciso empoderar e ensinar as pessoas, para que elas avaliem o risco de cada situação e tomem as medidas para proteger a si e a todos ao redor.
Um sujeito com sintomas de gripe ou Covid, por exemplo, deve trabalhar de casa, se possível, para não colocar em risco os demais colegas. E, caso tenha que sair, ele pode usar máscara para, assim, evitar a transmissão do vírus para os contatos próximos.
“É a mesma coisa que acontece com a infecção pelo HIV. Ter uma relação sexual sem preservativo te coloca numa situação de risco, mesmo que essa doença seja considerada hoje uma endemia”, compara.
Que fique claro: o alívio nas políticas restritivas não significa que elas foram inúteis ou não deveriam ter sido adotadas no passado. É consenso entre os especialistas que todas essas medidas salvaram muitas vidas num momento em que não existiam outros meios para barrar a infecção e suas complicações.
Hoje em dia, possuímos ferramentas testadas e aprovadas — vacinas e remédios — para lidar com a Covid e torná-la menos ameaçadora para a grande maioria da população.
E, claro, caso surja uma nova variante agressiva e com capacidade de escapar da imunidade, será preciso instaurar novamente muitos desses cuidados preventivos que começam a ser abandonados em certas partes do mundo.
Além das questões relacionadas à prevenção, outra mudança significativa da endemia envolve a vigilância: a forma como os casos são detectados e notificados é bem diferente.
Durante os últimos dois anos, muitos países fizeram uma busca ativa de infectados, mesmo aqueles que nem apresentavam sintomas típicos da Covid. Foram montadas tendas de testagem em diversos locais e kits de diagnóstico eram distribuídos gratuitamente (ou vendidos por um preço baixo) para os cidadãos — no Brasil, foram poucas as cidades ou os estados que lançaram uma política nesses moldes.
Aqueles indivíduos que testavam positivo eram então monitorados e orientados a ficar em quarentena. Na sequência, as pessoas com quem eles tiveram contato próximo nos dias anteriores eram comunicadas a também buscar os exames.
Durante uma pandemia ou uma epidemia, essa estratégia permite cortar as cadeias de transmissão do vírus na comunidade e evita que a situação cresça e gere uma bola de neve, que desemboca em um aumento massivo de hospitalizações e mortes.
Com a endemia, todo esse amplo programa de testagem, isolamento e rastreamento de contatos deixa de fazer sentido.
“Passa-se então para um modelo de vigilância sentinela, em que não é necessário testar todo mundo que apresenta sintomas de infecção respiratória”, explica Croda.
“Um sistema que concentre os testes nos hospitais ou nos ambulatórios de atenção primária é custo-efetivo e ajuda a identificar padrões no número de casos.”
“Se a vigilância notar um novo crescimento em determinada região, é possível intervir cedo, antecipando campanhas de vacinação ou disponibilizando mais testes para aquele local”, completa o especialista.
Ainda nesse contexto endêmico, a ciência ainda não sabe ao certo como será o futuro da vacinação contra a Covid. Será que todos deverão tomar uma quarta dose? Ou haverá a necessidade de reforços anuais, a exemplo do que ocorre com a gripe?
“É possível que precisemos de vacinas adaptadas de acordo com o surgimento de novas variantes, para proteger principalmente os grupos mais vulneráveis, como idosos, pacientes imunossuprimidos e crianças”, antevê Croda.
É cedo para decretar uma endemia?
As decisões tomadas por alguns países europeus geraram algumas controvérsias no meio acadêmico.
Num artigo publicado na revista especializada Nature, o pesquisador Aris Katzourakis, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, criticou o que ele considera um “otimismo preguiçoso”.
“Como virologista evolutivo, fico frustrado quando gestores públicos invocam a palavra ‘endemia’ como uma desculpa para fazer pouco, ou não fazer nada. Existem mais coisas que podem ser feitas do que aprender a conviver com rotavírus, hepatite C ou sarampo endêmicos”, escreveu.
Katzourakis também diz que é um erro pensar que a evolução dos vírus sempre os tornam mais “bonzinhos”.
“Lembre-se que as variantes alfa e delta são mais virulentas que a versão original detectada em Wuhan, na China. E a segunda onda da pandemia de gripe espanhola em 1918 foi muito mais mortal que a primeira”, argumenta.
“Pensar que a endemia é leve e inevitável não é apenas errado, mas perigoso: deixa a humanidade à mercê de muitos anos da doença, incluindo ondas imprevisíveis e novos surtos. É mais produtivo considerar o quão ruim as coisas podem ficar se continuarmos a dar ao vírus oportunidades de nos enganar. E daí então podemos fazer mais para garantir que isso não aconteça”, finaliza.
Para Croda, só o tempo dirá se a decisão dos países europeus foi certa ou errada. “Isso depende muito de fatores que não controlamos. Nesse meio tempo, pode surgir uma nova variante extremamente contagiosa, com escape imunológico e maior risco de hospitalização e óbito”, especula.
“É justamente para evitar que isso aconteça que precisamos ofertar vacinas para todos, especialmente para aqueles que ainda não tomaram nenhuma dose. Essa deveria ser a prioridade número um do mundo inteiro”, acrescenta.
Maciel concorda. “Quando a transmissão está muito alta, tudo pode acontecer, inclusive o surgimento de novas variantes.”, alerta.
“E o Brasil, além de seguir com a vacinação, precisa ampliar o acesso aos tratamentos contra a Covid, como os anticorpos monoclonais e os antivirais, que já são usados em outros países”, complementa.
Onde o Brasil se encaixa nesse debate?
Por ora, ainda é muito cedo para falar de endemia no nosso país, explicam os especialistas. Estamos na crista da onda da ômicron, com recordes no número de casos e um aumento expressivo nas hospitalizações e nas mortes por Covid durante os últimos dias.
O Instituto de Métricas em Saúde da Universidade de Washington, nos EUA, projeta que o Brasil deve atingir o pico de óbitos relacionados a essa nova variante no meio de fevereiro. A partir daí, os números devem cair novamente e se estabilizar durante o mês de março.
Portanto, estamos alguns passos atrás do que é observado em outras partes do mundo, onde os números já estão se estabilizando.
Para garantir uma situação mais tranquila por aqui, também é preciso ampliar a cobertura vacinal com a terceira dose. No momento, 23% dos brasileiros tomaram o reforço, número muito aquém do ideal. Vários estudos já mostraram que essa aplicação do imunizante é essencial para proteger contra a ômicron e seus efeitos mais graves no organismo.
Croda entende que, com o passar do tempo, vários países devem seguir os passos dos europeus e começarão a encarar a Covid sob uma nova ótica.
“E a América do Sul pode até ter uma vantagem nisso, já que é o continente com a maior cobertura vacinal contra a Covid do mundo“, compara.
“Assim que a onda da ômicron passar, podemos ficar numa condição muito melhor para diminuir as restrições”, diz.
Para entender como os gestores públicos enxergam essa discussão e se já há algum planejamento para que o país entre nessa fase de transição, a BBC News Brasil entrou em contato com o Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) e com o Ministério da Saúde.
Por meio de uma nota de esclarecimentos, o Conass declarou que “o avanço da vacinação no Brasil, que hoje já alcança mais de 75% do público-alvo vacinado com as duas doses, é o primeiro passo para que o país caminhe para superar a pandemia da covid-19, porém, a introdução da variante ômicron mostrou a complexidade do enfrentamento do vírus e sua alta capacidade de mutações.”
“A rápida transmissão desta variante criou uma nova pressão na rede assistencial e o aumento de óbitos. Não é possível considerar de caráter endêmico uma doença que traz esse peso na assistência e que tenha essa alta morbimortalidade. Superar a pandemia não quer dizer que não teremos mais casos e óbitos pela covid-19, mas não temos parâmetros ainda para saber o quanto de casos e óbitos serão considerados esperados e, dessa forma, tratados como endêmicos”, continua o texto.
“As atenções e os esforços atuais devem estar voltados para garantir a ampliação e manutenção dos leitos clínicos e UTI covid, além da intensificação das campanhas de incentivo para que todos os brasileiros completem o esquema vacinal, incluindo a dose de reforço. Ainda não é o momento para baixar a guarda e decretar o controle da pandemia no Brasil”, conclui o Conass.
O Ministério da Saúde não enviou resposta até a publicação desta reportagem.