Com maior comunidade brasileira do Oriente Médio, cidade no Líbano se mobiliza para eleição

Afastada do barulho frenético da capital Beirute e a apenas alguns quilômetros da fronteira com a Síria, a cidade libanesa de Sultan Yakoub é um desses frutos raros produzidos pela força da imigração. No caso, uma intensa diáspora vinda do Brasil, que se orgulha de ser a “maior comunidade brasileira do Oriente Médio”, instalada no vale do Bekaa, região de forte maioria muçulmana sunita e em grande parte controlada pelo imprevisível – e temido – Hezbollah.

Deixar Beirute pela rodovia local não é para amadores, especialmente num país onde acessórios como a seta são considerados “opcionais” na hora de comprar um carro, segundo testemunho da experiente motorista libanesa que acompanha a RFI em seu périplo nesta quarta-feira (11). O resultado é que a seta acaba sendo substituída pela buzina, em um caos mais ou menos organizado de carros, motos e ônibus, que multiplica pistas, desvios e túneis em direção ao interior do Líbano.

Ao passar o último checkpoint militar na saída de Beirute, as instruções são claras: é preciso de parar de filmar e fotografar. Entramos em região de forte influência do Hezbollah, que, segundo libaneses locais, costuma confiscar câmeras e microfones desavisados, além de publicar fotos de jornalistas na imprensa regional. No alto do Monte Líbano, restos de neve ainda são visíveis nesta primavera quente do país do Cedro.

Seguimos pela famosa “Estrada de Damas”, que atravessa Beirute e avança até a capital síria, passando por vilarejos drusos, verdadeiros balneários estivais que faziam a festa de turistas europeus antes da guerra civil, conflito sangrento que durou 15 anos (1975-1990) e deixou o país com cicatrizes indeléveis. No Líbano, tudo é “antes da guerra” ou “depois da guerra”, como se o conflito fraturasse a História do país em dois.

Nossa primeira parada é a casa do ex-deputado muçulmano sunita e ex-ministro da Educação do Líbano, Abdoul Mourad, um velho cacique do vale do Bekaa. Seu filho, Hassin Mourad, nasceu em São Paulo e é candidato nestas eleições legislativas ao Parlamento libanês, além de ser ex-ministro das Relações Exteriores do Comércio, uma liderança que ajudou a elaborar o tratado com o Mercosul, em “fase de finalização”. O pai, Abdoul, chegou ao Brasil em 1962, “antes da guerra”, em busca de oportunidades de trabalho. Fez fortuna e retornou, como muitos da diáspora libanesa de sua geração.

Abdoul é um dos raros libaneses, ao lado do filho Hassin, a assumir sem complexos o apoio ao partido político militarizado Hezbollah, assunto que é tabu no Líbano e que polariza o debate político. “Sem o Hezbollah, nosso inimigo Israel poderia atacar a qualquer momento, eles fazem o trabalho que o exército libanês, enfraquecido, não consegue fazer”, justifica. “Lutamos para que Israel deixe definitivamente o sul do Líbano, eles precisam devolver essas terras. Além disso, é preciso fazer uma nova Constituição, uma nova lei eleitoral para que seja uma democracia não submetida a grupos religiosos, como no Brasil”, diz o ex-deputado, um forte crítico do sistema político confessional libanês, assim como seu filho.

Mourad, que ocupou durante duas ocasiões o posto de ministro libanês da Educação, é também o criador da Universidade Internacional do Líbano, ponto de encontro da juventude desta região agrícola, de paisagens encantadoras que misturam plantações (trigo, tomate e batatas), vinhas, oliveiras e criações de cabras numa espécie de cartão postal fora do tempo ordinário da contemporaneidade. Uma região que, segundo relatos de libaneses que preferem não se identificar, também acumula favores e clientelismo. “É que sem proteção política não se faz nada no Líbano”, suspira Zeinab, filha de Mourad e seu braço direito na comunicação com a imprensa. “Por isso, para evitar que pedaços de terra sejam expropriados ou ocupados, os transformamos em ‘wakefs’, ou seja, de propriedade de um grupo religioso”, conta.

‘Melting pot’: Luzia Watanabe, brasileira de origem japonesa que emigrou para o Líbano depois de casar com um libanês, monta “bouraks”, especialidade turca de massa folhada, durante sua jornada de trabalho na cooperativa de mulheres brasileiras “3Chef”, comandada por Sawsan Saleh em Sultan Yakoub, 11 de maio de 2022 — Foto: RFI/Marcia Bechara

Tanto pai como filho não escondem a boa relação com o Brasil e os brasileiros. “Sinto o Brasil como se fosse a minha pátria”, diz com convicção o velho Mourad. “Às vezes me sinto mais brasileiro do que libanês”, insiste. “Trabalhei muito para assinar um acordo com o Mercosul. Minha maior preocupação [durante seu mandato como ministro das Relações Exteriores do Comércio do Líbano] foi fazer um tratado com o vice-presidente [brasileiro] Mourão para beneficiar a relação Brasil-Líbano”, diz o filho, Hassin.

“Podemos fazer muito trabalho com libaneses no Brasil e brasileiros que moram aqui”, sublinha o herdeiro político do clã, que conta que a primeira versão do acordo teve a assinatura suspensa porque no mesmo dia – 17 de outubro de 2019 – estourou nas ruas libanesas a chamada “revolução”, série de protestos que paralisou o país, colocando em xeque a classe política local. “Nunca considerei isso uma ‘revolução’, mas apenas um contratempo”, intervém Hassin.

A próxima parada é no centro de Sultan Yakoub, cidade libanesa formada por 70% de brasileiros, onde o português é ouvido quase em cada esquina. Na rua principal, em frente à grande mesquita, fica a Papa’s Pizzaria, dos brasileiros Majida Ali Abdouni e Hussein Ahmad Abu Saleh, que conseguiram a proeza de levarem este ano o prêmio de “melhor pizza do Líbano”. Modesta, Majida conta que já trabalhava com alimentação no Brasil e que se esmera em trabalhar com produtos brasileiros em suas pizzas de massa fina, muito apreciadas em toda a região. “Sultan Yakoub é um pedaço do Brasil no Líbano“, diz a pizzaiola.

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